A invenção do inferno de penas eternas
[Fabio Dionisi] fabio@editoradionisi.com.br
Caro leitor, o conceito de “inferno” evoluiu ao longo do tempo. Nem sempre foi como muitos ainda acreditam hoje em dia.
Na própria Barsa encontramos: “Historicamente, a concepção de inferno está ligada ao destino que se atribui às pessoas depois da morte. Na maioria das religiões antigas, não comportava a ideia de castigo.” 1 (v. 8; p. 112)
Mesmo quando remontamos aos hebreus, no Antigo Testamento, “somente depois de lenta evolução da consciência moral foi que se impôs a ideia de punição depois da morte, paralelamente à noção dos escolhidos por Deus para a partilha de sua vida e de sua felicidade.” 1 (v. 8; p. 112)
Para os que fossem punidos, o destino seria um lugar terrível repleto de horrores, chamado Geena, uma “alusão ao vale de Ge Bem-Hinnom, lugar onde tinham sido cremadas crianças sacrificadas a Moloch e onde se queimava o lixo de Jerusalém.” 1 (v. 8; p. 112)
Mesmo etimologicamente, a palavra “inferno” veio do latim, infernum. Seu significado real é “as profundezas” ou o “mundo inferior”.
Sheol, Xeol ou Seol (Hebraico)
A palavra Sheol, Xeol ou Seol, entre os antigos hebreus, referia-se a “região dos mortos” ou “mundo dos mortos”; mas, de maneira genérica para toda a humanidade. Ou seja, não havia uma separação entre os bons e os maus.
Na Bíblia Hebraica, a palavra sheol pode ser encontrada 65 vezes, referindo-se ao submundo dos mortos, retratado como algo profundo e escuro abismo. Nela, o termo está estritamente relacionado a abismo e sepultura. 2
Por estes motivos, o sheol não pode ser confundido com as regiões do purgatório ou do inferno do catolicismo.
Na Mitologia grega, o Hades refere-se aos mundos subterrâneos. 3 (p. 29)
Entre os incontáveis deuses gregos, mitologicamente falando, Hades é o deus do mundo subterrâneo; mais especificamente, o deus da morte e das forças do mundo subterrâneo. 3 (p. 38-40)
O nome Hades era, também, designado para a região onde ele habitava, uma região subterrânea.
Somente à partir do século VI a.C., o Hades (mundo infernal) foi geograficamente dividido em três zonas: Tártaro, Érebo e Campos Elísios; e, mesmo assim, num contexto basicamente mitológico. 4 (p. 207)
“Quando o mundo ctônio foi dividido em três compartimentos, Campos Elísios, onde ficavam por algum tempo os que pouco tinham a purgar; Érebo, residência também temporária dos que muito tinham a pagar e sofrer, o Tártaro se converteu no local de suplício permanente e eterno dos grandes criminosos mortais e imortais (…).” 4 (p. 578)
Percebam que tanto o Campos Elísios quanto o Érebos constituíam-se na residência temporária dos que tinham algo a pagar e sofrer; portanto, a pena não era eterna.
Quanto à vera origem do Tártaro: “Abismo insondável, que se encontra sob a terra (…). Nos poemas homéricos [Homero, 928 a.C. – 898 a.C] e na Teogonia, o Tártaro é o local mais profundo das entranhas da Terra, localizado muito abaixo do próprio Hades, isto é, dos próprios Infernos” 4 (p. 578) podemos constatar que na época de Homero (IX a.C.), antes de ser dividido geograficamente em três regiões (VI a.C.), não havia menção de que as pernas fossem eternas.
Dentro do contexto de nossos estudos, a palavra Hades aparecerá na Bíblia Hebraica traduzida para o grego, conhecida como Septuaginta (LXX), a mais antiga versão da Bíblia Hebraica, entre o século III a.C. e o I a.C., em Alexandria. Desde o século I, ela tornou-se a versão clássica da Bíblia para os cristãos de língua grega. Sabe-se que ela foi usada para diversas outras traduções da Bíblia.
Quando ela foi traduzida, os judeus usaram 61 vezes o termo Hades, sempre referindo-se ao reino dos mortos; mas sem adotar a concepção mitológica de deus Hades. 2
Infernus (Latim)
À medida que o cristianismo crescia em adeptos, no mundo romano, surgiu a necessidade de se traduzir a Bíblia para o latim.
Podemos dividir este período em duas fases: Vetus Latina (século I) e Vulgata Latina (final do século IV).
Vetus Latina foi o nome dado à estes textos bíblicos traduzidos para o latim antes da tradução de São Jerônimo, conhecida como Vulgata Latina.
“[Vulgata] tradução da Bíblia em latim feita por São Jerônimo (…). O Papa Dâmaso, em 382, encarregou Jerônimo de uma revisão da tradução existente, a Vetus latina (…), o que o santo fez para o Novo Testamento. Quanto ao Velho Testamento, o monge decidiu traduzir diretamente do hebraico com exceção dos Salmos, dos quais fez duas diferentes revisões do texto da Vetus latina, comparando-as com a LXX [Septuagina]. 5 (v. 7; p. 2190)
Na Vulgata, São Jerônimo usou o termo latino inferno para traduzir o hebraico sheol, o grego hades e a geena, sem distinção, o que fatalmente causou inúmeros mal-entendidos, uma vez que geena tinha um sentido bem diverso de hades e sheol. 2
Quanto aos que creditam o inferno de penas eternas ao Antigo Testamento, Allan Kardec esclareceu o seguinte, em: O céu e o inferno: 6 (p. 75-76)
“Aos que pretendem encontrar na Bíblia a justificativa da eternidade das penas podemos opor os textos contrários (…). As seguintes palavras de Ezequiel são a mais decisiva negação (…): 21. Se o ímpio fez penitencia de todos os pecados que tem cometido, se observou todos os meus preceitos, se obra segundo a equidade e a justiça, ele viverá certamente e não morrerá. – 22. Eu não me lembrei mais de todas as iniquidades que ele tenha cometido; viverá nas obras de justiça que houver praticado. 23. É que eu quero a morte do ímpio? disse o Senhor Deus, e não quero antes que se converta e desgarre do mau caminho que trilha? (Ezequiel, cap. XVIII.)
Eu juro por mim mesmo que não quero a morte do ímpio, mas que o ímpio se converta, que abandone o mau caminho e que viva. (Ezequiel, cap. XXXIII, v. 11.)”
O Inferno e as penas eternas no Novo Testamento
Vimos que o significado das palavras Hades e Sheol foi muitas vezes confundido com a palavra ‘Geena’, traduzida por ‘lago de fogo’, uma forma simbólica para destruição eterna.
Allan Kardec disse praticamente o mesmo: “Se Jesus ameaçou os culpados com o fogo eterno, também os ameaçou de serem lançados na Geena. Mas o que era a Geena? Um lugar nas cercanias de Jerusalém, o depósito de lixo da cidade. Seria possível tomar-se isso ao pé da letra? Era apenas uma dessas imagens fortes de que se servia para impressionar as massas. Acontecia o mesmo com o fogo eterno.” 6 (cap. VI; it.6; p. 66)
Somente no século VI começou a aparecer o conceito de “condenação eterna”, sobretudo com o pensamento de Santo Agostinho (354-430 d.C.).
Nossa opinião sobre o desvirtuamento do conceito do Inferno
À medida que surgiu a formação de um clero, no segundo século da era cristã, na igreja que Jesus não instituiu, desejoso de assumir o poder temporal, ele achou por bem se municiar de ferramentas para controlar seus adeptos, e neutralizar qualquer contestação à sua autoridade. E, como sempre o foi na história da humanidade, a melhor ferramenta de controle era o medo. Por isso, um inferno de penas eternas, com sofrimentos inimagináveis, vinha muito bem a calhar.
Para que nós humanos, cheios de falhas, pudéssemos nos salvar, havia um só meio: depender da absolvição que só era conseguida via os que se autodenominaram “representantes de Deus aqui na Terra”. Somente eles tinham a “autoridade” para nos livrar destas penas. Desde que seguíssemos suas determinações e aceitássemos, sem contestar, suas regras. Desta forma, surgiram todos os dogmas e o conceito de um inferno de penas eternas.
Fiquem em paz.
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1 Nova Enciclopédia Barsa. Encyclopaedia Britannica do22 Brasil Publicações Ltda., 1997.
2 Inferno [Disponível em:<https://pt.wikipedia.org/wiki/Inferno> Acesso em 10 apr. 2021.]
3 WILKINSON, Philip e PHILIP, Neil. Guia ilustrado Zahar: mitologia. Revisão técnica Miriam Sutter. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
4 BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.
5 Novíssima Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1982.
6 KARDEC, Allan. O céu e o inferno, ou Justiça Divina segundo o Espiritismo. São Paulo: Lake, 2002.