A Doutrina do Pecado Original

[Fabio Dionisi] fabiodionisi@terra.com.br

Santo Agostinho foi defensor fervoroso deste dogma da Igreja Católica Apostólica Romana, tanto que inicia o livro XIII de A Cidade de Deus afirmando: “Prova-se nele que a morte dos homens é castigo e se originou do pecado de Adão”.1 (p. 91)
Inicialmente, contudo, procuremos entender por que a Igreja estabeleceu dogmas, quando Nosso Mestre Amado Jesus não o fez em vida.
No livro Cristianismo e Espiritismo, do mestre Léon Denis, encontraremos o apoio necessário.2 (p. 68a71)
“(…) depois da morte do Mestre, os primeiros cristãos possuíam, em sua correspondência com o mundo invisível, abundante fonte de inspirações (…). Mas as instruções dos Espíritos nem sempre estavam em harmonia com as opiniões do sacerdócio nascente, que (…) nelas muitas vezes encontrava também uma crítica severa (…). À medida que se constitui a obra dogmática da Igreja, nos primeiros séculos, os Espíritos afastam-se pouco a pouco dos cristãos ortodoxos, para inspirar os que eram então designados sob o nome de heresiarcas (…). Desde o século III, afirmavam [os Espíritos] que os dogmas impostos pela Igreja (…) não eram mais que um obscurecimento do pensamento do Cristo. Combatiam [também] os faustos já excessivos e escandalosos dos bispos (…). Essa oposição crescente tornava-se intolerável aos olhos da Igreja. Os ‘heresiarcas’, aconselhados e dirigidos pelos Espíritos, (…) interpretavam o Evangelho com amplitude de vistas que a Igreja não podia admitir, sem cavar a ruína dos seus interesses materiais. Quase todos [os heresiarcas] se tornavam neoplatônicos, aceitando a sucessão das vidas do homem (…), punições proporcionais às faltas da alma, reencarnada em novos corpos para resgatar o passado e purificar-se pela dor (…). Essa doutrina de esperança e de progresso não inspirava, aos olhos dos chefes da Igreja, o suficiente terror da morte e do pecado. Não permitia firmar sobre bases convenientemente sólidas a autoridade do sacerdócio. O homem, podendo resgatar-se a si próprio das suas faltas, não necessitava do padre. O dom de profecia, a comunicação constante com os Espíritos, eram forças que (…) minavam o poder da Igreja. Esta, assustada, resolveu pôr termo à luta, sufocando o profetismo. Impôs silêncio a todos (…). Depois de ter, durante três séculos, reconhecido no dom de profecia (…) a Igreja chegou a declarar que tudo o que provinha dessa fonte não era mais que pura ilusão ou obra do demônio. Ela se declarou (…) a única profecia viva, a única revelação perpétua e permanente. (…) Os profetas eram passaram a ser ‘o bispo e o padre que julgavam, pelo dom do discernimento e as regras da Escritura, se o que fora dito provinha do espírito de Deus ou do espírito do demônio’ (…). Mas os homens desinteressados, que amavam a verdade pela verdade, não eram bastante numerosos nos concílios. Doutrinas, que melhor se adaptavam aos interesses terrenos da Igreja, foram elaboradas por essas célebres assembleias, que não cessaram de imobilizar e materializar a Religião (…). Essa pesada construção (…) surgiu na Terra em 325 com o concílio de Nicéia, e foi concluída em 1870 com o último concílio de Roma. Tem por alicerce o pecado original e por coroamento a imaculada conceição e a infalibilidade papal.”
Agora sim podemos entrar na questão equivocada do pecado original; um dos mais importantes dogmas adotados pela Igreja.
Léon Denis credita ao dogma do pecado original todo o edifício construído pela Igreja para o exercício de seu poder temporal.
“O pecado original é o dogma fundamental em que repousa todo o edifício dos dogmas cristãos (…). O pecado original, que pune toda a posteridade de Adão, isto é, a Humanidade inteira, pela desobediência do primeiro par, para depois salvá-la por meio de uma iniquidade inda maior – a imolação de um justo – é um ultraje à razão e à moral (…).”2 (p. 80)
Como o homem conserva, intuitivamente, a ideia de que sofre na presente encarnação pelas faltas cometidas em outras precedentes, não é difícil compreender porque essa concepção do “pecado original”, e da consequente expiação necessária, está presente em muitas crenças.
A Igreja aproveitou-se disso para criar todos os demais preceitos, embora em contradição com a infinita bondade e perfeita justiça do Pai, com vistas a estabelecer a sua autoridade.
“Dessa concepção errônea derivam as da queda, do resgate e da redenção pelo sangue do Cristo, os mistérios da encarnação [ressureição], da virgem mãe, da imaculada conceição (…).”2 (p. 80-81)
Construção na qual Agostinho dedicou muito esforço, embora revestido das melhores intenções, uma vez que não compartilhava com o desejo de dominação que então a Igreja buscava.
E é mister registrar que o Hiponense só desejava a nossa salvação. Aquela mesmo que ele perseguiu aguerridamente. Aliás, exemplo que urge seguirmos também…
Portanto, podemos afirmar que o Cristianismo repousou, por quase dois milênios, sob dois pontos capitais: o da queda da humanidade terrestre, com o equívoco de Adão e Eva, e da necessidade desta reparação através da imolação de um anjo, o Nosso Senhor Jesus Cristo.
Segundo a Igreja, Sua morte foi necessária para salvar os seres humanos desse “pecado de origem”, que seria congênito e hereditário, isto é, inato e passaria de uma geração para outra.
“Sem o dogma do pecado original não mais se concebe a necessidade do Redentor. Por isso, nada é ensinado mais explicitamente pela Igreja do que a queda de Adão e as suas funestas consequências, para todos os seus descendentes.”2 (p. 81)
E porque é tão importante que o nó seja desfeito?
Porque o dogma do pecado original diminui o poder supremo do Pai. Como pode um Ser perfeito condenar a humanidade terrestre por um erro cometido por um único casal? E, em adição, sentenciar seu filho ungido ao sofrimento hediondo de uma flagelação e crucificação?
Além disso, com o pecado original e a necessidade da redenção, por meio da imolação do Cristo, caímos na Doutrina da Graça.
Este dogma, cujo artífice foi Agostinho, destinado a combater os maniqueus, partidários da doutrina de dois princípios opostos igualmente fortes: o bem e o mal, e os seguidores de Pelágio que proclamavam que o homem podia se salvar por si só, levou-nos à necessidade de Deus para nos salvar.
E como a Igreja impunha o “fora da Igreja não há salvação”, seus seguidores ficavam irremediavelmente dependentes desta para poderem alcançar o Reino de Deus.
“Segundo S. Paulo, cuja teoria foi adotada sucessivamente por Agostinho, pelos reformadores do século XVI (…), o homem não pode obter a salvação por suas próprias obras, arrastando-o sua natureza (…) ao mal. Essa inclinação funesta é o resultado da queda do primeiro homem (…), tendo-se tornado a herança de todos os filhos de Adão. É pela concepção que aos filhos se transmite o pecado dos pais (…). Todos os homens (…) seriam votados à condenação eterna, se Deus, em sua misericórdia, não tivesse encontrado um meio de os salvar. Esse meio é a redenção. O filho de Deus (…) cumpriu a vontade do Pai (…) oferecendo-se em holocausto para salvação de todos os que se ligam à sua igreja. Desse dogma resulta que os fiéis não são salvos por um exercício da sua livre vontade, nem por seus próprios merecimentos (…), mas por efeito de uma graça que Deus concede a seus eleitos. (…) poder-se-ia dizer: É Deus quem atrai os escolhidos e quem endurece os pecadores. Tudo se faz pela predestinação divina. Adão, por conseguinte, não pecou por seu livre-arbítrio. Foi Deus, absoluto soberano, que o predestinou à queda.”2 (p. 82-83)
Adicionalmente, como os pecados cometidos em vida, posteriores ao nascimento, só podem ser absolvidos através dos sacramentos da Eucaristia e da Extrema-Unção, a salvação do ser humano depende sempre da Igreja… Enfim, sujeita a uma deliberação que somente seus padres e bispos podem conceder, ou não.
E, depois outorgamos à Niccolò Machiavelli (1469-1527) o epitáfio de maquiavélico…

1 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 2009.
2 DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. 8. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1919.

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