O Dogma da Predestinação x Doutrina Espírita
Fabio Dionisi [fabiodionisi@terra.com.br]
O dogma da predestinação nos arremete à época de Santo Agostinho, quando se acreditava que sem a ajuda de Deus, o homem não consegue se salvar sozinho.
Em O Missionário Santo Agostinho de Hipona e a 2ª Revelação, no item: “Doutrina da Graça: sem a ajuda divina, o homem não pode salvar-se por si só. Predestinação à salvação”, estudamos em detalhes este tema. 1
“Na mesma época de Agostinho, Pelágio afirmava que a boa vontade e as boas obras humanas seriam suficientes para a salvação individual.” 2 (p. 111)
Em palavras mais acessíveis, Pelágio afirmava que o homem conseguiria salvar-se através de seu esforço pessoal, do emprego de sua vontade, aliadas às obras no bem que fizesse para “apagar a multidão dos pecados”.
Segundo o Nosso Senhor Jesus Cristo, podemos apagar as nossas faltas através da prática do bem [amor] ao próximo. Portanto, as obras no bem, que realizamos, podem apagar nossos “pecados”.
Não só Agostinho, mas a própria Igreja posicionou-se contrária ao conceito. Esta última porque tinha todo o interesse em defender a ideia da submissão total do homem (a criatura) à Deus (Criador). Como forma de exercer sua autoridade sobre a massa dos fiéis, uma vez que, segundo o pelagianismo, estes não necessitariam mais da Igreja para se salvar…
Dizer que só Deus pode salvar o homem, e tendo a Igreja se posicionado como a intermediária necessária entre Deus e a humanidade, o homem teria que necessariamente passar por ela para se salvar, uma vez que instituiu que a absolvição dos nossos pecados, só é possível através da confissão, eucaristia, ou a extrema-unção.
Se retornarmos aos ensinamentos do Nosso Senhor Jesus Cristo, poderemos verificar que o Nosso Modelo e Guia sempre afirmou que a salvação depende apenas do respeito ao maior mandamento, que resume toda a lei e todos os profetas.
Léon Denis, em Cristianismo e Espiritismo, fala sobre o dogma da predestinação. 3
Ele inicia dizendo que ele tem por fundamento o pensamento de Paulo: o homem não pode obter a salvação por suas próprias obras. Mais tarde, tornar-se-ia um dogma, que abraçou este conceito do Apóstolo dos gentios. Os fiéis não se salvam por sua livre vontade, nem por seus merecimentos, mas por efeito de uma graça concedida, por Deus, aos seus eleitos.
“A soberania de Deus, dizem os teólogos, manifesta-se pela predestinação e pela redenção. Sendo Deus absoluto soberano, sua vontade é a causa final e decisiva de tudo quanto ocorre no Universo. Agostinho é o autor desse dogma, que ele instituiu em sua luta com os maniqueus (…) e contra Pelágio, que reivindicava os direitos da liberdade humana.” 3 (p. 82)
Agostinho o fez baseando-se na autoridade de Paulo. O homem não pode obter a salvação por suas próprias obras, uma vez que a sua natureza o arrasta, invencivelmente, para o mal. 3 (p. 82)
Seria Paulo, o Apóstolo dos Gentios, a origem, pelo que escreveu em sua Carta aos Romanos: 8, 28-30: “O plano da salvação – E nós sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio. Porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, também os chamou; e os que chamou, também os justificou, e os justificou, também os glorificou (Romanos: 8, 28-30.” 4 (p. 2133-2134)
Mas qual era o pensamento agostiniano a respeito?
Na verdade, combina várias crenças: (1) a incapacidade do homem vencer sozinho o mal que decorre de seus vícios, (2) a da necessidade da Graça Divina para a salvação do indivíduo, e (3) a da existência de predestinados à salvação.
O Santo de Hipona afirmava que o homem tem uma tendência natural para o mal. 2 (p. 112)
“De acordo com Agostinho, a liberdade humana é própria da vontade e não da razão. E é nisso que reside a fonte do pecado. O indivíduo peca porque usa de seu livre-arbítrio para satisfazer uma vontade má, mesmo sabendo que tal atitude é pecaminosa.” 2 (p. 112)
Como decorrência deste modo de pensar, Agostinho afirmava que o homem não pode ser autônomo, “em sua vida moral, isto é, deliberar livremente sobre sua conduta. No entanto, como o que conduz seus atos é a vontade e não a razão, o homem pode querer o mal e praticar o pecado, motivo pelo qual ele necessita da graça divina para salvar-se.” 2 (p. 112)
Ora, se é necessária a Graça Divina para o ser livrar-se das penas do inferno, e como nem todos se salvam, isso nos leva à conclusão de que Deus deve escolher os que seriam eleitos à salvação, redundando, igualmente, na ideia da predestinação do ser humano; isto é, se eleito, salva-se, caso contrário, não…
“Sem a graça de Deus, o homem nada pode conseguir. Mas nem todas as pessoas deverão receber essa graça, mas somente os predestinados à salvação.” 2 (p. 111)
O que, entre nós, caros leitores, nos leva a um problema muito grave: por que o homem deveria envidar esforços para se salvar se seu destino já se encontraria traçado, por desejo de um deus que não trata todos os seus filhos de forma igual?
De Santo Agostinho, naturalmente precisamos conhecer o pensamento de Tomás de Aquino, sobre a predestinação.
Sobre a predestinação, teria ratificado o que Santo Agostinho impôs durante a Patrística?
Na sua Suma Teológica, encontramos o tema na Prima Pars, Questão 23: Da Predestinação. 5
Art. 1 — Se os homens são predestinados por Deus: “Convém a Deus predestinar os homens. Pois, tudo está sujeito à divina providência (…). Ora, à providência pertence ordenar as coisas para um fim (…).”
Art. 3 — Se Deus reprova alguém: “Deus reprova certos homens. Porque (…) a predestinação faz parte da providência (…). Por onde, como pela divina providência é que os homens alcançam a vida eterna, pode também ela permitir que certos não a alcancem (…). Se pois, a predestinação, concernente aos que Deus ordenou à salvação eterna, faz parte da providência, também o faz a reprovação (…).”
Art. 4 — Se os predestinados são eleitos por Deus: “O conceito de predestinação pressupõe a eleição (…). Porque (…) a predestinação faz parte da providência (…).”
Caro leitor, com estas transcrições todas, podemos concluir que São Tomás de Aquino segue Santo Agostinho.
Hoje em dia, isso mudou um pouco, para melhor, mas ainda longe da verdade. Segundo a Doutrina Católica, desde sempre Deus conhece e elege; mas, isto não significa que, por eleger seus escolhidos, Ele anule o livre arbítrio dos eleitos. Tanto que estes podem, pelo mal uso do livre arbítrio, se perder. Da mesma forma, eles interpretam que, por não escolher alguém, não significa que o Pai não concede a graça suficiente para que este se salve também. Ou seja, “Deus elege apenas os bons sem anular a sua liberdade psicológica e moral; Ele dá a graça suficiente para todos, de modo que quem se perde, só se perde por culpa própria, e nunca por injustiça de Deus.” 6
Como somos Espíritas, não podemos simplesmente cessar por aqui; mister se faz registrar os esclarecimentos, definitivos, da Doutrina Espírita. Para ela não existe destino, não há predestinação, não existem eleitos, etc. O futuro é construído todos os instantes, uma vez que, através de pensamentos e ações, o Espírito escolhe e determina seu caminho, exercitando um atributo indissociável à criatura inteligente: o livre-arbítrio.
Para finalizar, em O livro dos Espíritos encontramos na Questão 115: “Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem saber. A cada um deu determinada missão, com o fim de esclarecê-los e de os fazer chegar progressivamente à perfeição, pelo conhecimento da verdade, para aproximá-los de si.”
Fiquem em paz. Estamos salvos…
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1 DIONISI, Fabio A. R. O Missionário Santo Agostinho de Hipona. E a 2ª Revelação. Ribeirão Pires: Editora Dionisi, 2014.
2 COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. História e grandes temas. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.
3 DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1987.
4 A Bíblia de Jerusalém. 9. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1986.
5 Suma Teológica. Questão 23: Da predestinação [Disponível em:<https://permanencia.org.br/drupal/node/361> Acesso em 16 abr. 2022.]6 Suma Teológica e predestinação. [Disponível em:<https://www.montfort.org.br/bra/cartas/doutrina/20040904134700/> Acesso em 15 abr. 2022.]