Autoconhecimento e reforma íntima

[Fabio A. R. Dionisi] fabiodionisi@terra.com.br

[Artigo publicado na RIE – Revista Internacional de Espiritismo, em 2018.]

Caro leitor, confessamos que nos fascina a dinâmica da conversão de Santo Agostinho; e, mais especificamente, pelo momento de sua “grande virada”, quando decidiu sobrepujar, definitivamente, todos os vícios que até então o fizeram viver uma vida devassa.
Este momento, tão determinante, está descrito em seu livro Confissões, quando, de repente, ouve uma voz a lhe repetir: “Tolle, lege; toma, lê”. Segundo ele, não proveniente de um ser visível, convence-se de que se tratava de uma ordem de Deus, determinando-lhe que abrisse ao acaso as Sagradas Escrituras, e que lesse a primeira passagem que sob os olhos lhe caísse. Como fazemos quando realizamos o Evangelho no Lar, uma prática Espírita, mas que é recomendável para todos, independentemente do credo professado…
No caso dele, coube-lhe uma das cartas de Paulo, o Apóstolo dos Gentios; e, dessa leitura, não teve mais dúvidas sobre o que devia fazer…
“Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a sa-tisfação da carne com seus apetites.” (Carta aos Romanos, 13:13-14)
Imediatamente, após a leitura dessa passagem, Agostinho toma uma posição drástica a respeito de sua vida. Nas suas palavras: “Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram.” (Confissões; cap. 8; item 12)
A partir daí transformou-se numa pessoa em permanente batalha contra suas fraquezas, até o ano de seu decesso (430 d.C.), na pequena cidade portuária de Hipona.
Curiosamente, muitos séculos depois o encontraríamos, agora desencarnado, novamente relatando sua constante busca pela melhoria, e da forma como lograva realizá-la: “Q. 919. Qual o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal? — Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo. (…) Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma (…). O conhecimento de si mesmo é, portanto, a chave do progresso individual (…).” (O Livro dos Espíritos)
Mas não foi algo que surgiu do nada, nem do acaso…
A busca do conhecimento e da verdade são duas cons-tantes no homem. Compelido a tal, ou porque é impulsionado pela Lei Divina do Progresso, uma das leis depositadas pelo Pai, por ocasião da sua criação, ou porque o homem sabe, mesmo que inconscientemente ainda, sobre: o seu Criador, sua criação, seus propósitos, o destino que o espera, e de uma série de outras informações, as quais teve acesso nas suas inúmeras reencarnações e existências no plano espiritual.
O homem cogita, e quem pensa, questiona, quer saber, e quer saber certo. Enfim, busca o conhecimento e a verdade.
Indelevelmente registrado no Espírito, a essência criada por Deus, a centelha divina, esse conhecimento encontra-se a espera que seja acessado.
Nos primeiros estágios de sua jornada, obcecado pela necessidade de atender suas necessidades, unicamente guiado pelos instintos de sobrevivência pessoal e da espécie (instinto de reprodução), caminha sem noção, sem atentar para aquilo que é realmente importante em sua vida; a razão de ser de sua existência.
O apego às coisas da matéria, a gratificação dos sentidos que se obtêm no atendimento das suas necessidades prementes, os prazeres que os mesmos lhes proporcionam, — aliás, parte do mecanismo necessário para sua própria sobrevivência, pois se não houvesse o prazer, não haveria a procura pela sua satisfação —, e que, embora efêmeros e fugazes, obliteram a busca pelos verdadeiros valores e necessidades da vida do Espírito.
Todavia, um dia a saturação chega. Esgotado de sofrer tantas dores e desilusões, preço que paga pelo atendimento a esses prazeres, acorda o Espírito para a sua realidade verdadeira. Segundo Léon Denis, surge a necessidade de se obter resposta às questões básicas sobre o problema do ser, do destino e da dor.
Cansado da escravidão sufocante que a matéria impõe, pois ela dá bastante, mas muito pede em troca, enfim exausto, sem conseguir controlar seu destino, entediado das quimeras a consumi-lo, mas que nunca lhe dão o retorno esperado, o que é agora compreensível, pois o espírito foi criado para outros fins, entra em choque com a vida que não mais faz sentido.
Vivendo desconectado de sua essência verdadeira, sua alma reclama. Surge então o basta, a conversão, o despertamento para a busca daquilo que realmente pode satisfazê-lo.
Num primeiro momento, inicia sua busca no exterior, pois assim está habituado a fazê-lo; mas, logo descobre que, antes de mais nada, precisa encontrar-se, através do seu autoconhecimento.
Melhorar-se o reconduz a estrada que precisa trilhar; porém, para reformar-se, precisa identificar seus defeitos. E conhecer, também, os motivadores dos mesmos…
Sem identificar os móveis que o leva ao seus pensamentos, sentimentos, emoções, vontades e ações, torna-se difícil alterar a rota, desapegar dos valores e crenças do passado, superar o domínio que a matéria tem sobre ele; com vistas a começar a viver livre e em busca de um novo patamar; retornando, em direção, ao plano para o qual foi criado!
Aurelius Augustinus enfrentou essas questões, como muitos já enfrentaram, e como todos enfrentarão no seu dia “D”.
Com o seu “toma e lê”, chegara a sua hora. Era preciso estancar o mal interior, era necessário plantar o bem dentro de si.
Para chegar a isso, estuda, reflete e chega à conclusão de que o meio mais eficaz para se melhorar é se conhecendo.
“Um sábio da antiguidade vos disse: Conhece-te a ti mesmo” (aforismo inscrito no oráculo de Delfos).
Enfim, Santo Agostinho encontra, na filosofia grega, o apoio para sua jornada.
Oito séculos antes, Sócrates já havia dito que o autoexame é a melhor maneira para o aperfeiçoar-se. Reencontro este que torna possível o renascer da própria consciência, e, como consequência, a autolibertação.
Inicialmente, Agostinho buscou o entendimento da distinção entre o bem e o mal, através da análise da realidade externa, para depois voltar-se para o seu interior. Em outros termos, primeiro o progresso intelectual, que dá o entendimento da distinção entre o bem e o mal; e, com esta compreensão, mais o bom uso do livre-arbítrio, a busca do progresso moral.
Aliás, muito semelhante a dinâmica proposta por Sócrates: (a) Conceito, (b) Ironia (ou arte da interrogação), (c) maiêutica (processo dialético que traz à luz a interioridade do ser, com a finalidade de se atingir o autoconhecimento).
Num primeiro estágio, Sócrates buscava que seu discípulo dissipasse todas as ilusões que tivesse sobre o mundo e sobre si mesmo; para isso, se utilizava da arte da interrogação. Fazer perguntas sobre perguntas, até que o ser se conscientize dos elementos motivadores que falamos há pouco.
Uma vez posto à luz o verdadeiro íntimo do discípulo, isto é, a descoberto suas vaidades, vícios, etc., coloca-lo, numa segunda etapa, no caminho do burilamento interior.
Conhecer-se para reformar-se.
Se Sócrates trouxe um método de autoconhecimento, já Agostinho foi quem na verdade explorou essa busca de interioridade e a exemplificou em si mesmo, pois sempre procurou mergulhar dentro de si e conscientizar-se de seus erros e defeitos, conforme expõe de forma autêntica em Confissões.
De Agostinho encontramos: “Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros.” (Confissões; lv. II; it. 1)
Passo a passo, seguindo o roteiro sempre atual para o processo da reforma íntima: olhar para dentro de si; encarar e aceitar os próprios erros e falhas; aceitar-se como falho, sem punir-se; para, por fim, mudar o que tem que ser mudado.
Não disse Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”?

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