No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus

[Fabio A. R. Dionisi] fabiodionisi@terra.com.br

Caros leitores, há meses que nos encontrávamos intrigados com a palavra Verbo, mencionada no Evangelho segundo João. Jesus Cristo seria o Verbo? Por que João diz: o Verbo era Deus?
Tudo começou quando estudávamos as discussões, nos primeiros séculos da era cristã, a respeito da verdadeira natureza de Jesus. E, principalmente, sobre a teoria de Ários, fundador do arianismo, e como Santo Agostinho refutou esta crença, defendendo o dogma da Santíssima Trindade.
Naturalmente chegamos ao cerne da questão, que tanto levantou polêmica sobre a propalada divindade de Jesus: o Prólogo de João Evangelista fora o pivô, originando uma polêmica teológico-filosófica de gigantescas proporções: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João, 1:1)
Foi a partir desta passagem, principalmente entre os católicos, que nasceu a crença de que Jesus era o Verbo e que Ele era igual ao Pai, em importância e de mesma substância; o que Ários não concordou, embora lhe desse o status de deus, se bem que menor ao Deus-Pai.
Dando sequência aos estudos, pesquisamos Obras Póstumas, uma coletânea de vários trabalhos de Allan Kardec, que não haviam aparecido em livro, embora a maioria tivesse sido publicada na Revista Espírita, quando nos deparamos com este ponto, novamente.
“Esta passagem dos Evangelhos [João, 1:1-14] é a única que, à primeira vista, parece encerrar implicitamente uma ideia de identificação entre Deus e a pessoa de Jesus; é também aquela sobre a qual se estabeleceu mais tarde a controvérsia a respeito do assunto.” 1 (p. 127)
O Mestre Lionês prossegue em suas elucidações, dizendo: “A questão da divindade de Jesus foi sendo, gradualmente, suscitada. Nasceu das discussões levantadas a propósito das interpretações de alguns sobre as palavras – Verbo e Filho; mas, foi somente no 4º século que uma parte da Igreja a adotou. Este dogma, portanto, é o resultado de decisões humanas; não emana de revelação divina.” 1 (p. 127)
Muito ponderado e cauteloso, como era de seu feitio, Allan Kardec inicia o desenvolvimento do tema alertando que as palavras eram de João e não de Nosso Senhor Jesus Cristo, bem como que elas podem ter sido alteradas, ao longo dos séculos, e que, mesmo que não tenham sido, contrastam com as próprias afirmações de Jesus.
Exemplifiquemos com umas poucas passagens dos Evangelhos, inclusive com algumas de João…
“Subo para o meu Pai e vosso Pai, {para} meu Deus e vosso Deus.” (Jo, 20:17)
Onde Jesus se coloca na mesma posição que ocupamos. E não como se fosse alguém acima de nós, como um deus.
“Ouvistes o que eu vos disse. Vou e venho para vós. Se me amásseis, vos teríeis alegrado por eu ir para Pai, porque o Pai é maior do que eu.” (Jo, 14:28)
O que se encontra em negrito é muito claro: Deus é maior. Nela, Jesus não se iguala a Deus, nem em importância, nem em substância.
“Certo chefe o interrogou, dizendo: Bom Mestre, fazendo o que herdarei a vida eterna? Disse-lhe Jesus: Por que me dizes ‘bom’? Ninguém é bom senão um, Deus.” (Lc, 18:18-19)
Querem maior prova do que esta? Novamente, Jesus se coloca como um ser inferior a Deus; ademais, podemos até inferir que Ele ainda se considera imperfeito.
“As minhas ovelhas ouvem a minha voz, eu as conheço e {elas} me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, Nunca mais, por todo sempre, {elas} perecerão e ninguém as arrebatará da minha mão. O meu Pai, que {as} deu para mim, é maior que tudo, e ninguém pode arrebatar da mão do Pai.” (João, 10:27-29)
Mais uma vez, Jesus diz que o Pai é maior que tudo.
“[João Batista] Pois aquele que Deus enviou [Jesus] fala as palavras de Deus (…).” (João 3:34)
Continuando, Kardec nos diz que mesmo que as palavras fossem de João, mesmo que não tivessem sido modificadas, ainda assim, haveria que ser considerado o sentido duplo que elas podem conter.
“Aceitando-se, porém, tais quais são, ainda assim elas não resolvem a questão no sentido da divindade, porque tanto se aplicaria a Jesus-Deus, como a Jesus-criatura de Deus.” 1 (p. 127)
Ato contínuo, nosso Codificador prossegue afirmando que o Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus.
Aqui cabe uma digressão…
Queremos lembrar, aos nossos leitores, que verbo, do Latim verbu, significa: palavra.
Jesus, por ter recebido a missão de divulgá-la, e por possuir virtudes tais que o fazem relacionar-se diretamente com Deus, foi confundido com o próprio Deus, e assim incluído na Santíssima Trindade.
Quando, na verdade, de acordo com o argumento sólido do Codificador, era o Messias, o enviado divino que assimilara a palavra de Deus, e que encarnou para difundi-la entre os homens.
“De fato, o Verbo é Deus, porque é a palavra de Deus. Jesus tendo recebido esta palavra diretamente de Deus, com a missão de a revelar aos homens, assimilou-a. A palavra divina que Ele observou, encarnou-se nele. Ele a trouxe consigo, nascendo, e é com razão que disse: ‘O Verbo se fez carne e habitou entre nós!’ Jesus podia, pois, ser encarregado de transmitir a palavra de Deus, sem ser Deus, como um embaixador transmite as palavras de seu soberano, sem ser o soberano.” 1 (p. 127)
Recentemente, J. Herculano Pires, um dos ícones do pensa-mento Espírita, complementou o tema, explicando que toda a confusão começou pela pobreza do vocábulo em Latim.
João usou o termo grego Logos, em seu Evangelho. Na tradução latina (A Vulgata de São Jerônimo, c. 400 d.C.) o termo Logos, mais amplo em sentido, só encontrou a palavra Verbum, que possui um sentido mais restrito: a de palavra.
No grego, além de palavra, inclui: inteligência, razão, mente divina e o pensamento divino. 1 (p. 118)
“Jesus foi por isso tomado como a personificação do pensamento de Deus, representando a segunda pessoa da Trindade. Podemos aceitar a alegoria no seu primeiro tema, embora apenas como alegoria: Jesus é a mensagem de Deus, o seu Verbo enviado à Terra, mas não o segundo tema que implica a confusão pessoal de Jesus com Deus.” 1 (p. 118)
Por isso, e por outras, Ários e Santo Agostinho estavam ambos equivocados. Ários, um pouco menos, se assim podemos dizer, uma vez que considerava Jesus menor, e de substância diferente do Pai, mas errado por colocá-lo na posição de um deus, mesmo que menor. Agostinho, muito mais, por ter defendido o dogma da Trindade, um dos pilares da Igreja Católica. Um dos principais dogmas elaborados ao longo da existência do maior núcleo do cristianismo, que professa a crença num Deus trino: Pai, Filho (Jesus) e Espírito Santo. Onde, as três pessoas estabelecem uma comunhão e união perfeita, formando um só Deus; possuindo, os três, a mesma natureza divina, a mesma grandeza e poder.
A título de recapitulação, assim podemos resumir este dogma: Pai: não foi criado e nem gerado; está em absoluta comunhão com o Filho e com o Espírito Santo; a esta primeira pessoa divina é atribuía a criação do mundo; Filho: não foi criado pelo Pai, mas gerado da substância do Pai; encarnou-se, assumindo assim a natureza humana; é considerado possuidor de todas as perfeições divinas; a Ele é atribuída a redenção da humanidade terrestre; Espírito Santo – não do foi criado e nem gerado; terceira pessoa divina, ele personaliza o Amor íntimo e infinito de Deus sobre os homens, segundo Santo Agostinho; manifestando-se primeiramente no Batismo, depois no episódio da transfiguração de Jesus, mas que foi plenamente revelado no dia de Pentecostes; e que estabelece, entre os fieis e Jesus, uma comunhão íntima, tornando-os unidos num só Corpo.
Complexo, não acham? Felizmente, caros leitores, o Santo de Hipona já não pensa desta forma. Basta buscá-lo, em suas 36 mensagens, nas obras de Allan Kardec, para constatar sua saudável mudança de opinião…


1 KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 13. ed. São Paulo: LAKE, 2005.

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